O mapa traçado e recortado

Partilha da África e suas especificidades

 

Representação da Conferência de Berlim
Representação da Conferência de Berlim (1884-1885), demonstrando a discussão entre líderes nacionalistas europeus. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kongokonferenz.jpg. Acesso em: 26 set. 2021.

 

“Nessa época, aliás, a África não é assaltada apenas na sua soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais”

BOAHEN, Albert Adu. História Geral da África, vol VII. Brasília: UNESCO, 2010, p. 3.

 

  • As linhas artificiais

Após a Conferência de Berlim, entre 1884 e 1885, o continente africano sofreu uma série de divisões territoriais que, na maioria dos casos, não considerou as já divisões existentes feitas pelos povos originários, separando membros de um mesmo povo e juntando reinos e culturas totalmente diferentes entre si. Em certos casos, sociedades historicamente inimigas foram forçadas a entrar nessas “linhas” artificiais e se considerarem de uma mesma nação.

Os reinos, impérios e outros regimes políticos e suas respectivas sociedades não perderam somente sua soberania nacional, mas também valores e tradições que marcavam os indivíduos pessoalmente. Portanto, podemos perceber o quanto o imperialismo dos países ocidentais destruiu as estruturas seculares do continente africano. E, também, perceber o quanto devemos entender e questionar as ações desse período histórico.

 

Mas... os povos da região lutaram contra a colonização?

Quando estudamos esse assunto, muitas vezes nos esquecemos de comentar o “lado” dos africanos, e, assim, nos dar a entender que não houve protagonismo daquelas sociedades afetadas pela colonização. No entanto, a resposta é clara e sem rodeios: dezenas de autoridades africanas foram contra a violência feita pela Europa. A seguir, leiamos um trecho do livro História Geral da África, volume VII, organizado pela UNESCO:

 

"Em 1895, Wogobo, o Moro Naba, ou rei dos Mossi (na atual República do Alto Volta), declarou ao oficial francês, capitão Destenave: 'Sei que os brancos querem me matar para tomar o meu país, e, ainda assim, você insiste em que eles me ajudarão a organizá -lo. Por mim, acho que meu país está muito bem como está. Não preciso deles. Sei o que me falta e o que desejo: tenho meus próprios mercadores; considere -se feliz por não mandar cortar -lhe a cabeça. Parta agora mesmo e, principalmente, não volte nunca mais'". (BOAHEN, 2010 apud CROWDER, 1968, p. 97).

 

As especificidades

A colonização do século XIX, representado pela Conferência de Berlim, foi dura e certeira, porém, não foi igual para todo o continente africano. Cada sociedade sofreu a dominação europeia de uma maneira diferente, cada uma com sua particularidade. Por isso, mostraremos abaixo a situação de quatro países distintos:

 

  • República Democrática do Congo (RDC)

A atual República Democrática do Congo, localizada na região central do continente, foi dominado no século XIX pelos belgas, em um dos casos mais marcantes da colonização.

A presença dos europeus no Congo-Kinshasa ocorreu bem antes da Conferência de Berlim: foi em 1876, na Conferência Geográfica de Bruxelas, que o rei belga Leopoldo II decidiu fundar a Associação Internacional Africana para investir na exploração do Congo, que mais tarde seria chamado de Estado Livre do Congo. A partir daí, Leopoldo assinou uma série de decretos reais, e o mais importante deles foi um de 1885 que, além de confirmar oficialmente a existência do Congo, afirmava que todas as terras desocupadas eram propriedades do Estado, a fim de o Rei receber rapidamente o lucro daquelas terras. Contudo, ele não conseguiria explorar o território sozinho. Assim, ele atraiu várias companhias privadas, cobrando impostos e taxas, e proibiu severamente o comércio do Congo com outros países.

O rei Leopoldo II justificava suas ações no Congo dizendo que estava fazendo o “bem”, levando a “civilidade” europeia e vontade de trabalhar para os povos autóctones do Congo, os quais, em sua concepção, estavam estagnados no tempo. No entanto, sabemos que esse pensamento de que as populações africanas são inferiores e bárbaras não cabe mais no século XXI. Esses termos são utilizados para menosprezar e discriminar sociedades que são muito diferentes de nós, as quais têm conceitos de progresso e desenvolvimento únicos para cada uma. Além de que o discurso belga de fazer o “bem” era somente uma fachada: a população era obrigada a trabalhar nas ferrovias, minas de marfim e na coleta da borracha. A fim de colocar mão de obra barata à disposição do governo e dos capitalistas, os europeus implantaram o trabalho forçado, que veio se somar a uma tributação sufocante. Igualmente, o rei usou a tortura de forma generalizada. Ele punia e mutilava os nativos que o desobedeciam e o contestavam. Com isso, a colonização do Congo foi a mais brutal noticiada pela história.

Muitas sociedades da África central, incapazes de opor resistência eficaz aos colonizadores ou de compreender que eles estavam praticando ações colonialistas, começaram por se submeter pacificamente, mas não demoraram a juntar forças para lutar pela independência. Esse tipo de conflito retardatário ocorreu no Congo, onde o povo autóctone, de início, considerava os agentes do Estado Livre do Congo parceiros comerciais e aliados contra os traficantes de escravos estrangeiros. Só quando os funcionários do rei passaram a instituir altos impostos e a recrutar mão de obra é que as sociedades locais perceberam que estavam enganados.

Logo as pessoas passaram a resistir de diversas formas: Entre 1885 e 1905, grupos dominados do Baixo Congo e do Congo Central se revoltaram. Uns dos mais bem-sucedidos foram os Yaka – que se localizavam no sudoeste -, os quais combateram de maneira eficaz os europeus durante mais de dez anos, antes de serem vencidos em 1906, os Buja e os Boa, que se revoltaram no fim do século contra o trabalho forçado nas plantações de borracha. De vez em quando, soldados africanos recrutados para destruir resistências locais se revoltavam em protesto contra os abusos coloniais. Lutavam contra os péssimos salários, a severidade das punições e o comportamento autoritário de seus oficiais europeus. Foi no Estado Livre do Congo que irromperam os motins mais violentos: em 1895, toda a guarnição de Luluabourg, uma província, se revoltou, e, sob o comando de suboficiais amotinados, os soldados assassinaram o chefe do posto para se vingar da tirania praticada por ele.
 

  • Gana (ou o país Ashanti)

A Costa do Ouro, atual Gana, foi invadida pelos ingleses em 1874, no entanto somente em 1896 a Inglaterra consegue dominar a região. Em nenhuma outra parte da África Ocidental houve tão longa tradição de luta entre os africanos e os europeus como entre os Ashanti – povos nativos - e os britânicos na Costa do Ouro. Os conflitos entre o reino dos Ashantis – aquele que sucedeu anos depois o reino de Gana – e os europeus começaram por volta de 1760 e culminaram com um choque militar em 1824: os Ashanti bateram as forças britânicas e seus aliados, matando o comandante indicado pelos britânicos para ser o governador de Gana. Além de que mesmo sendo invadidos em 1874 eles não pararam de resistir, como podemos ver no excerto abaixo retirado do livro História Geral da África, volume VII, da UNESCO, em relação a quando a Inglaterra propõe fazer uma aliança com os Ashantis:
 

"Em 1891, quando os britânicos ofereceram proteção a Prempeh I, rei dos Ashanti, na Costa do Ouro (atual Gana), ele replicou: 'A proposta para o país Ashanti, na presente situação, colocar-se sob a proteção de Sua Majestade, a Rainha e Imperatriz da Índia, foi objeto de exame aprofundado, mas me permitam dizer que chegamos à seguinte conclusão: meu reino, o Ashanti, jamais aderirá a uma tal política. O país Ashanti deve continuar a manter, como até agora, laços de amizade com todos os brancos. Não é por ufanismo que escrevo isto, mas tendo clareza do significado das palavras [...]. A causa dos Ashanti progride, e nenhum Ashanti tem a menor razão para se preocupar com o futuro ou para acreditar, por um só instante, que as hostilidades passadas tenham prejudicado a nossa causa'". (BOAHEN, 2010 apud FYNN, 1971, p. 43-4).
 

Ademais, a resistência não apenas apareceu em conflitos armados. Em 1896, o rei Prempeh I e seus conselheiros resolveram não entrar em luta com os britânicos, os quais estavam às vésperas de tomar o poder político do reino, e aceitar as condições dos europeus de forma estratégica e diplomática. Porque, percebendo que não havia mais como atrasar o avanço dos ingleses, Prempeh I propõe se render para que não houvesse mais guerras que atingissem violentamente os Ashantis.

Porém, para impedir a resistência de atuar, o império britânico prendeu e exilou os líderes dos Ashantis nas ilhas do Oceano Índico e combateu de maneira opressiva a religião da população, proibindo em 1907, por exemplo, o culto a divindade Katawere.

Para saber mais sobre o reino dos Ashantis, acesse o seguinte link. Disponível em: http://www.thekingdomofasante.com/. Acesso em: out, 2020.

 

Rei Premeph I negociando com soldados britânicos, 1896
Rei Premeph I negociando com soldados britânicos, 1896. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Prempeh-124-palaver-and-submission.jpg. Acesso em: set. 2021.

 

  • Mali

Na época da dominação francesa, o Mali – formado oficialmente em 1960 – não tinha a mesma configuração geográfica que tem hoje. Na mesma região do Mali dos dias atuais, existiram uma extensão da colônia francesa do Senegal – que naquela época teve uma série de nomes: Alto Senegal (1879-1890), Sudão Francês (1890-1899), Senegâmbia e Níger (1902-1904) – e grupos autóctones que mais tarde foram dominados e anexados ao protetorado, como o Império Tukulor. Assim, a colonização europeia no Mali foi totalmente diversificada, sendo muitas vezes difícil coletar e transcrever os vários acontecimentos históricos. Por isso focaremos em um ponto: a invasão e dominação francesa do Império Tukulor.

À época da imposição militar da França ao Império, desde a década de 1860, o rei Ahmadu – sucessor do rei Al Hadj Umar, fundador do império Tukulor – estava sofrendo uma série de problemas: além de lutar contra os franceses, Ahmadu precisava impor sua autoridade aos seus irmãos, que reivindicavam o trono, e aos súditos, os quais estavam insatisfeitos com o novo governo. Como esperado, Ahmadu deu prioridade a impor sua posição de autoridade política, fazendo um acordo com os irmãos e pondo fim a rebeliões dos diversos grupos, particularmente os Bambara. No entanto, ele precisava de armas e de recursos financeiros, o que o obrigava a manter relações amistosas com os franceses, optando então por uma estratégia de aliança frente a confrontos militares. Portanto, enquanto Ahmadu se comprometia a autorizar os franceses a construir vias comerciais no seu império e lhes permitia o privilégio de circular embarcações a vapor no rio Níger, os franceses reconheciam a existência do seu império como Estado soberano e se comprometiam a não invadir o seu território nem a levantar qualquer fortificação.

Contudo, a aliança não interessou mais a França, e, em 1881, os franceses invadem o Império e tomam, em 1889 e 1890 respectivamente, a fortaleza Kundian e a capital.

Igualmente houveram lutas individuais e de pequenos grupos contra a colonização europeia, e não só a de soberanos. Existiram as chamadas “migrações de protesto”: para escapar dos agentes de recrutamento – para o exército e para o trabalho forçado – os aldeões sumiam na floresta ou fugiam rumo a territórios vizinhos. De acordo com a coletânea História Geral da África, as “migrações de protesto” foram tão intensas que cerca de 62 mil pessoas deixaram a região dominada pelos franceses.
 

  • Angola

A partir da independência do Brasil, Portugal passou a correr às pressas para alcançar as potências europeias na corrida imperialista, principalmente porque o país não tinha um objetivo claro na colonização do território africano. A maior “função” das outras colônias portuguesas era de sustentar a escravidão no Brasil. Assim, ao perder sua maior colônia, o Império Português precisou ir contra o tempo para colonizar a África e evitar o colapso de seu império praticamente falido.

Apesar de a Angola ter abolido a escravidão em 1836, durante o século XIX os dominadores permaneceram praticando a escravidão, enviando os povos autóctones para minas, construção de estradas e produção de borracha. É bom citar que a colonização da Angola foi tão violenta quanto à do Congo: além da série de mortes e torturas físicas, o número de abusos sexuais em mulheres até os quinze anos de idade é assustador. No entanto, não foi nada fácil para os portugueses dominar todo o território: a região Ovambo, no sul, até 1914 era independente, a região vizinha de Ganguela teve revoltas até 1917 e as terras dos Quioco, no distrito de Lunda, só foram ocupadas em 1920.

Outrossim, a resistência dos povos e reinos da Angola também se fez presente. Uma das mais marcantes foi a que ocorreu em 1902, entre o reino Bailundu – localizado na região atual da Angola - e português. Entre 1899 e 1902, o preço da borracha sofreu uma queda, especialmente por causa da intrusão dos portugueses no comércio angolano. Ressentidos, os povos do reino Bailundu fomentaram um levante popular em massa contra os europeus. Esse levante obteve apoio de vários reinos Umbundu vizinhos, pois, para ampliar as bases de apoio, os reinos faziam laços por terem ancestrais comuns. Logo, os Bailundu e seus aliados expulsaram os portugueses das montanhas Ovimbundu.
 

Vista da cidade de Luanda, Angola, em 1883
Vista da cidade de Luanda, Angola, em 1883. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Luanda1883.jpg. Acesso em: set. 2021.

 

  • A luta hoje

Em 2020, após a morte violenta do estadunidense negro George Floyd por um policial branco, uma série de manifestações antirracistas eclodiram pelo mundo. Nela, os manifestantes passaram a debater sobre a presença de estátuas que exaltavam figuras racistas do passado e reivindicaram a retirada desses monumentos aos governos.

Muitos movimentos surgiram também para questionar a exaltação de autoridades europeias responsáveis pela morte de milhares de pessoas no período da colonização da África, no século XIX. Para exemplificar, movimentos antirracistas organizados por congoleses e/ou descendentes de congoleses ocuparam as ruas do Congo e Bélgica. Como forma de protesto, os manifestantes pintaram uma estátua do general Storms, do governo do rei Leopoldo II, com tinta vermelha, representando o sangue das centenas de pessoas que foram torturadas e mortas em suas mãos.

 

Foto da estátua do General Storms em junho de 2020
Foto da estátua do General Storms em junho de 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Belgique_-_Bruxelles_-_Monument_au_g%C3%A9n%C3%A9ral_Storms_-_06.jpg. Acesso em: 26 set. 2021.