A historiografia africana: lutas, debates e invenções

Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:S%C3%A9n%C3%A9gal-Griot_Diola_(AOF).jpg. Acesso em: mar. 2021.
A escrita da História da África tem uma longa história, tão longa como a própria História do continente africano. É importante ressaltar que não foi tão fácil a construção historiográfica africana, se ela existe hoje foi pela luta de muitos, debates, inovações e o anseio de uma narrativa endógena e sem preconceitos.
Cronologicamente, a historiografia (ciência da história) africana pode ser dividida antes e depois da década de 1950. Antes, a história era marcada pela necessidade de excluir a África e deixar o protagonismo para a Europa. A afirmativa para tal fato era de que as sociedades africanas não poderiam formar “uma civilização” ou que a história do continente africano não tinha importância. Baseado no racismo existente na época, a gigantesca história foi esquecida e inviabilizada por muito tempo. Na década de 20, porém, as teorias racistas perdem força, o Darwinismo Social 3 é um exemplo delas. Com o passar do tempo, elas tornaram-se insustentáveis.
Dois argumentos principais justificaram por muito tempo a "não existência" de uma história africana, eles serão explicados abaixo. O Positivismo, que é uma corrente de pensamento do século XIX, moldava o jeito de se fazer História. Uma de suas características é a preocupação com a fonte histórica, que é mais do que necessária para a construção histórica. Tal movimento considerava como fonte somente o documento escrito. Visão que se expande, posteriormente. com outras correntes historiográficas. Pois muitos outros tipos de fontes podem ajudar os historiadores a construir uma narrativa histórica (como por exemplo, fontes audiovisuais, arqueológicas, orais, biográficas, impressas, entre outras).
Esse modo de fazer história não contribuiu para a produção de historiografia sobre o continente africano, afinal, as sociedades africanas eram em sua grande maioria ágrafas, nas quais a oralidade era o principal meio de comunicação e registro histórico. Os griôs (também chamados de griots) são os sujeitos responsáveis por guardar e reproduzir os relatos orais na tradição africana, permitindo com que essa lógica pudesse acontecer, sendo, por essa razão, muito respeitados e grandes símbolos da história africana. No entanto, para a historiorafia do século XIX e do início do século XX, isso rebaixavam os africanos à categoria de “primitivos”. É importante dizer que mesmo com a maior parte do continente não tendo sistemas de escritas, ainda existia uma classe de escribas que sabia ler e escrever, ela só não ocorria massivamente. Ainda, a maior parte dos documentos escritos sobre África, em sua maioria, eram produzidas por estrangeiros, e carregavam preconceitos, eram raras, e mal distribuídas no tempo e espaço. Alguns exemplos são: os retratos de Ibn Kaldun, Ibn Battuta, Leão, o Africano, entre tantos outros.
Outra afirmativa de quem acreditava que a África não tinha história era de que no continente africano não existiam organizações políticas como na Europa. Porém, como vocês poderão observar no capítulo que falamos dos reinos e impérios africanos (Njinga! Reinos e Impérios africanos) - mostramos que no continente africano existiam, sim, organizações políticas. Um exemplo de líder política é a Rainha do Ndongo e do Matamba, a Njinga. O território que atualmente é a Angola foi liderado de forma gloriosa pela Dona Ana de Sousa (seu nome quando foi convertida pela Igreja Católica), ela derrotou europeus, e tinha táticas de negociação que surpreendiam muitos. Além disso, o foco em organizações políticas, como reinos, impérios e estados-nações também advinha do pensamento Positivista, já que sociedades que não se organizam desta maneira, também são históricas.
Com o passar do tempo, a História Positivista foi deixada para trás e novas formas de se pensar a História foram desenvolvidas. A Escola dos Annales 4 proporcionou com que novos sujeitos históricos fossem abordados, já que com o Positivismo somente a classe política e econômica (os líderes políticos e econômicos) faziam parte da História. Assim como, também permitiu uma abertura para outros tipos de fontes, como já citado antes.
Por conseguinte, com essa nova escola historiográfica, tudo que é relacionado ao homem e ao tempo se tornou passível de estudo. Por essa razão, em muitos estudos, os "vencedores" da história foram deixados de lado, e os "perdedores" passaram a ser retratados. Temas africanos começaram a ser abordados e uma mudança no panorama foi iniciada. Contudo, a grande inovação que permitiu com que a África construísse sua história foi devido, principalmente, ao historiador Jan Vansina.
A partir da década de 50, há uma independência em relação aos arquivos e a ampliação das fontes. Somado a isso, ocorrem os movimentos por direitos civis nos EUA e um maior interesse de pessoas negras e estudiosos pela África, num contexto também marcado pelas dinâmicas da Guerra Fria. Assim, as fontes orais poderiam ser utilizadas para construir a narrativa histórica da África. Desenvolvendo, deste modo, um trabalho pioneiro quanto ao uso de fontes de tradições orais pela historiografia africana. Pioneirismo, que, inclusive, altera todo o campo da História em si.
Na década de 60, num novo contexto para a historiografia africana, Jan Vansina publica a obra Tradição oral e sua metodologia que muda vários paradigmas existentes, ele indica quais os controles e críticas necessárias para a utilização das tradições orais na ciência. A oralidade que é tão presente no continente africano, passa a ser, desta forma, muito importante, não só para as sociedades africanas, como também para o desenvolvimento da escrita da história africana. Ademais, ela ainda proporciona à disciplina histórica uma mudança epistemológica que influencia, não somente a produção sobre o continente africano, mas toda a academia.
É interessante dizer que a oralidade não é menor, nem maior do que os documentos escritos. Ela ajuda a construir narrativas históricas, tem sua metodologia, regras, assim como os diversos tipos de fontes que podem ser utilizados pelos historiadores. E mais ainda, merece atenção o fato do continente africano ter a oralidade por uma escolha deles, e não porque não era capaz de ter a escrita. O livro de Djibril Niane, Sundjata ou a Epopeia de Mandinga, mostra um pouco dessa tradição oral na África Ocidental, ao tratar sobre a fundação do Império do Mali, a recomendamos! Agora, você já sabe que para estar estudando tal tema, muitos debates foram travados.
1 - Os Diola ou Jola são um grupo étnico encontrado no Senegal, na Gâmbia e na Guiné-Bissau.
2 - O sabar, que se originou a partir das pessoas serer é um tradicional tambor do Senegal que também é jogado na Gâmbia. O povo Serer é um grupo étnico-religioso da África Ocidental. Eles são o terceiro maior grupo étnico do Senegal, constituindo 15% da população senegalesa.
3 - Darwinismo Social é a teoria de evolução da sociedade, que coloca a raça humana em hierarquias, e o negro é a mais inferior dela - o nome é inspirado no Darwinismo, teoria da evolução, criada por Charles Darwin.
4 - A Escola dos Annales é o movimento historiográfico do século XX nascido na França, destacou-se por incorporar novos métodos das Ciências Sociais à História.

Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:S%C3%A9n%C3%A9gal-Chef_indig%C3%A8ne_et_son_griot_(AOF).jpg. Acesso em: mar. 2021.

Uma ilustração do livro Descoberta da Terra de Júlio Verne, desenhada por Léon Benett e publicada em 1878. Domínio Público.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Handmade_oil_painting_reproduction_of_Ibn_Battuta_in_Egypt,_a_painting_by_Hippolyte_Leon_Benett..jpg. Acesso em: mar. 2021.

Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:TumbaIbnBatuta.jpg. Acesso em: mar. 2021.