A tradição oral preenchendo lacunas

A historiografia africana: lutas, debates e invenções

 

Griot senegalês, de etnia diola, tocando um sabar. Fotografia de François-Edmond Fortier (1862-1928). Domínio Público.
Griot senegalês, de etnia diola,1 tocando um sabar.2 Fotografia de François-Edmond Fortier (1862-1928). Domínio Público.
Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:S%C3%A9n%C3%A9gal-Griot_Diola_(AOF).jpg.​ Acesso em: mar. 2021.

 

A escrita da História da África tem uma longa história, tão longa como a própria História do continente africano. É importante ressaltar que não foi tão fácil a construção historiográfica africana, se ela existe hoje foi pela luta de muitos, debates, inovações e o anseio de uma narrativa endógena e sem preconceitos.

Cronologicamente, a historiografia (ciência da história) africana pode ser dividida antes e depois da década de 1950. Antes, a história era marcada pela necessidade de excluir a África e deixar o protagonismo para a Europa. A afirmativa para tal fato era de que as sociedades africanas não poderiam formar “uma civilização” ou que a história do continente africano não tinha importância. Baseado no racismo existente na época, a gigantesca história foi esquecida e inviabilizada por muito tempo. Na década de 20, porém, as teorias racistas perdem força, o Darwinismo Social 3 é um exemplo delas. Com o passar do tempo, elas tornaram-se insustentáveis.

Dois argumentos principais justificaram por muito tempo a "não existência" de uma história africana, eles serão explicados abaixo. O Positivismo, que é uma corrente de pensamento do século XIX, moldava o jeito de se fazer História. Uma de suas características é a preocupação com a fonte histórica, que é mais do que necessária para a construção histórica. Tal movimento considerava como fonte somente o documento escrito. Visão que se expande, posteriormente. com outras correntes historiográficas. Pois muitos outros tipos de fontes podem ajudar os historiadores a construir uma narrativa histórica (como por exemplo, fontes audiovisuais, arqueológicas, orais, biográficas, impressas, entre outras).

Esse modo de fazer história não contribuiu para a produção de historiografia sobre o continente africano, afinal, as sociedades africanas eram em sua grande maioria ágrafas, nas quais a oralidade era o principal meio de comunicação e registro histórico. Os griôs (também chamados de griots) são os sujeitos responsáveis por guardar e reproduzir os relatos orais na tradição africana,  permitindo com que essa lógica pudesse acontecer, sendo, por essa razão, muito respeitados e grandes símbolos da história africana. No entanto, para a historiorafia do século XIX e do início do século XX, isso rebaixavam os africanos à categoria de “primitivos”. É importante dizer que mesmo com a maior parte do continente não tendo sistemas de escritas, ainda existia uma classe de escribas que sabia ler e escrever, ela só não ocorria massivamente. Ainda, a maior parte dos documentos escritos sobre África, em sua maioria, eram produzidas por estrangeiros, e carregavam preconceitos, eram raras, e mal distribuídas no tempo e espaço. Alguns exemplos são: os retratos de Ibn Kaldun, Ibn Battuta, Leão, o Africano, entre tantos outros.

Outra afirmativa de quem acreditava que a África não tinha história era de que no continente africano não existiam organizações políticas como na Europa. Porém, como vocês poderão observar no capítulo que falamos dos reinos e impérios africanos (Njinga! Reinos e Impérios africanos) - mostramos que no continente africano existiam, sim, organizações políticas. Um exemplo de líder política é a Rainha do Ndongo e do Matamba, a Njinga. O território que atualmente é a Angola foi liderado de forma gloriosa pela Dona Ana de Sousa (seu nome quando foi convertida pela Igreja Católica), ela derrotou europeus, e tinha táticas de negociação que surpreendiam muitos. Além disso, o foco em organizações políticas, como reinos, impérios e estados-nações também advinha do pensamento Positivista, já que sociedades que não se organizam desta maneira, também são históricas.

Com o passar do tempo, a História Positivista foi deixada para trás e novas formas de se pensar a História foram desenvolvidas. A Escola dos Annales 4 proporcionou com que novos sujeitos históricos fossem abordados, já que com o Positivismo somente a classe política e econômica (os líderes políticos e econômicos) faziam parte da História. Assim como, também permitiu uma abertura para outros tipos de fontes, como já citado antes.

Por conseguinte, com essa nova escola historiográfica, tudo que é relacionado ao homem e ao tempo se tornou passível de estudo. Por essa razão, em muitos estudos, os "vencedores" da história foram deixados de lado, e os "perdedores" passaram a ser retratados. Temas africanos começaram a ser abordados e uma mudança no panorama foi iniciada. Contudo, a grande inovação que permitiu com que a África construísse sua história foi devido, principalmente, ao historiador Jan Vansina.

A partir da década de 50, há uma independência em relação aos arquivos e a ampliação das fontes. Somado a isso, ocorrem os movimentos por direitos civis nos EUA e um maior interesse de pessoas negras e estudiosos pela África, num contexto também marcado pelas dinâmicas da Guerra Fria. Assim, as fontes orais poderiam ser utilizadas para construir a narrativa histórica da África. Desenvolvendo, deste modo, um trabalho pioneiro quanto ao uso de fontes de tradições orais pela historiografia africana. Pioneirismo, que, inclusive, altera todo o campo da História em si.

Na década de 60, num novo contexto para a historiografia africana, Jan Vansina publica a obra Tradição oral e sua metodologia que muda vários paradigmas existentes, ele indica quais os controles e críticas necessárias para a utilização das tradições orais na ciência. A oralidade que é tão presente no continente africano, passa a ser, desta forma, muito importante, não só para as sociedades africanas, como também para o desenvolvimento da escrita da história africana. Ademais, ela ainda proporciona à disciplina histórica uma mudança epistemológica que influencia, não somente a produção sobre o continente africano, mas toda a academia.

É interessante dizer que a oralidade não é menor, nem maior do que os documentos escritos. Ela ajuda a construir narrativas históricas, tem sua metodologia, regras, assim como os diversos tipos de fontes que podem ser utilizados pelos historiadores. E mais ainda, merece atenção o fato do continente africano ter a oralidade por uma escolha deles, e não porque não era capaz de ter a escrita. O livro de Djibril Niane, Sundjata ou a Epopeia de Mandinga, mostra um pouco dessa tradição oral na África Ocidental, ao tratar sobre a fundação do Império do Mali, a recomendamos! Agora, você já sabe que para estar estudando tal tema, muitos debates foram travados.

1 - Os Diola ou Jola são um grupo étnico encontrado no Senegal, na Gâmbia e na Guiné-Bissau.

2 - O sabar, que se originou a partir das pessoas serer é um tradicional tambor do Senegal que também é jogado na Gâmbia. O povo Serer é um grupo étnico-religioso da África Ocidental. Eles são o terceiro maior grupo étnico do Senegal, constituindo 15% da população senegalesa.

3 - Darwinismo Social é a teoria de evolução da sociedade, que coloca a raça humana em hierarquias, e o negro é a mais inferior dela - o nome é inspirado no Darwinismo, teoria da evolução, criada por Charles Darwin.

4 - A Escola dos Annales é o movimento historiográfico do século XX nascido na França, destacou-se por incorporar novos métodos das Ciências Sociais à História.

 

Chefe indígena e seu griot (Senegal, AOF). Fotografia de François-Edmond Fortier (1862-1928). Domínio Público.
Chefe indígena e seu griot (Senegal, AOF). Fotografia de François-Edmond Fortier (1862-1928). Domínio Público.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:S%C3%A9n%C3%A9gal-Chef_indig%C3%A8ne_et_son_griot_(AOF).jpg.​ Acesso em: mar. 2021.

 

Gravura representando Ibn Battuta e o seu guia no Egito. Uma ilustração do livro “Descoberta da Terra” de Júlio Verne, desenhada por Léon Benett e publicada em 1878. Domínio Público.
Gravura representando Ibn Battuta e o seu guia no Egito.
Uma ilustração do livro Descoberta da Terra de Júlio Verne, desenhada por Léon Benett e publicada em 1878. Domínio Público.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Handmade_oil_painting_reproduction_of_Ibn_Battuta_in_Egypt,_a_painting_by_Hippolyte_Leon_Benett..jpg. Acesso em: mar. 2021.

 

Uma casa na cidade de Tânger, possível local da sepultura de Ibn Battuta. Domínio Público.
Uma casa na cidade de Tânger, no Marrocos, possível local da sepultura de Ibn Battuta. Domínio Público.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:TumbaIbnBatuta.jpg. Acesso em: mar. 2021.