Deixa Gente Viver

Larissa de Rezende Tanganelli


Doutoranda do PPGAS-Unicamp

"As tentativas de fotografar e narrar o cotidiano da pandemia são, inevitavelmente, arriscadas.

Se o processo da pandemia traz à superfície e torna explícito o par vida e morte, a emergência deste cenário vista desde o cotidiano se apresenta pelo redimensionamento coletivamente percebido de nossas experiências de tempo, espaço, domesticidade, cuidado, proximidade, entre tantas outras, entrecortado pelas distintas desigualdades socio-corporais que se adensam e se deslocam.

A tentativa deste ensaio foi colocar um cotidiano em perspectiva e, por meio dele, refletir sobre o que constitui a própria perspectiva de um recorte imagético que ensaia narrar e interpelar as sensibilidades coletivas na produção cotidiana de sua dinâmica de vida em meio à pandemia. Uma vez que as dinâmicas de infecção viral, articuladas a tecnologias de governo, modulam os deslocamentos e permanências de diferentes categorias sociais, uma das distinções elementares que pareceu emergir dessa conjunção foi o estar na ou fora da rua.

Tendo passado a maior parte dos últimos meses isolada em meu apartamento no centro de São Paulo, seguindo por escolha uma exigência moral de estar em casa, meu cotidiano, como o de diversos amigos e colegas, tem sido disposto pelo imperativo de estar em ou fora de casa, imperativo este que, penso, tem sido constantemente entrecortado pelo o de pessoas que apresentam, como exigência marcante das governamentalidades pandêmicas, estar na ou fora da rua em espaços urbanos. Com este ensaio, arrisco trazer algumas destas experiências marcadamente distintas da minha, a partir de uma estabilização provisória e parcial de especificidades emergentes, porém não menos estruturais.

Todas as fotos foram tiradas em um sábado de meados julho. Neste momento, os dados oficiais informavam uma média semanal de 1000 mortos por dia e o país já tinha confirmado 72 mil mortes e um 1.8 milhão de casos confirmados. Neste momento, no estado de São Paulo estavam morrendo diariamente cerca de 340 pessoas, sendo a cidade de São Paulo a que totalizou o maior número de mortes."

 

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Da janela do meu apartamento, todos os dias, debaixo do viaduto oficial da ditadura civil-militar, há: a fila de trabalhadores essenciais que, oficial e moralmente, não são reconhecidos nem enquanto trabalhadores nem como essenciais; a fila dos antigos quadros militares que foram convertidos em unidades de contenção de vadiagem e criminalidade urbana; a fila de pessoas em situação de rua e a fila de ambulâncias que passam incessantemente rumo ao hospital da rua de trás. No pilar de sustentação, se lê “deixa gente viver”.

 

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Em meio à quase inexistência de medidas específicas da prefeitura de São Paulo em relação às populações moradoras de rua da cidade, à parte projetos específicos de deputadas (os)
estaduais e vereadoras (es), parte dessa população passou a acampar em julho as imediações da prefeitura da cidade. Com as temperaturas mínimas chegando a 10oC, com precárias
condições de acesso a higienização, abrigo, alimentação e serviços de saúde, parte dessa população passou, a partir do mês de julho, a se concentrar na região com reivindicações
específicas, ressaltando sua urgência. Nos meandros deste processo, pronunciamentos ilustres da primeira-dama Bia Dória assertavam que não seria “correto” distribuir marmitas para estas
pessoas já que elas “têm que se conscientizar que têm que sair da rua”, dizendo que a rua é um “atrativo” e que a prática incentiva as pessoas que “gostam de ficar na rua”. Direito não pode, assistencialismo também não pode, medidas repressivas continuam podendo.

 

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Em uma das maiores e mais movimentadas avenidas do centro expandido da cidade, um homem dorme junto a seus pertences e em companhia de seu cão. As marmitas que, segundo os
pronunciamentos oficiais, não devem ser distribuídas para pessoas em situação de rua, recorrentemente são divididas pelos donos com seus companheiros de todo dia.

 

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Apesar do relativo movimento nas ruas perto da bolsa de valores, e a despeito de já ser final da tarde, a cesta e o chapéu desta artista permanecem quase vazios. Sentada à entrada de uma loja de esquina fechada em um sábado, sua presença parece inexistir para os que passam enquanto o som de seu chocalho, que parece ser de sementes, e de seu pandeiro ressoam alto perto das risadas de um grupo de jovens que dava um rolê na praça em frente.

 

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Com as eleições municipais marcadas para o final do ano, inúmeras obras estão sendo realizadas na cidade, especialmente às madrugadas, inclusos os finais de semana. Na foto, um homem na porta de um edifício supervisiona um grupo de quatro homens que soldam do outro lado da rua. O supervisor afastado é o único que usa máscara, enquanto os outros quatro, que seguram todos o mesmo ferro, não as usam.

 

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Meninos da linha de frente de profissionais de limpeza equilibrista, que em cinco minutos pareceram tirar metade dos sacos de recicláveis do lixo e subiram no caminhão.

 

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Em uma das vias de acesso a um dos maiores centros de comércio popular do país, a 25 de março, no alto da ladeira passam trabalhadores com três uniformes diferentes, um amigo e um catador que tem uma das carroças mais bonitas da cidade, coberta de todas as melhores correntes, latas, penas, tecidos e botões que ficam pelas ruas do bairro. É sábado e ao fim de tarde o fluxo anda baixo. Segunda de manhã, após a flexibilização da quarentena, ela volta a ser transitável apenas se os manejos dos ombros, pés e cotovelos seguirem o movimento da multidão, até sábado à tarde de novo.

 

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Na frente da mesma ladeira, na Casa da Bóia, que nunca havia reparado, a placa, por acaso, está lá atando inícios de séculos de gripes, febres e parte de gente que morre e parte que vive, porque, há quem diga, que é por acaso.