As Linhas da Demência: Desenhando Memórias, Artefatos e Experiências

Bárbara Rossin Costa 

Doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional – UFRJ. 

Neste ensaio, utilizo o desenho como um de modo de ver com o corpo para vasculhar com o tato aquilo que observo, ouço e leio. O interesse em experimentar outras grafias e poéticas, para dar conta das vivências de pesquisa, foi alimentado após meu encontro com Linda, cuja função auditiva apenas se fazia ativa com o olho-no-olho ou o toque sobre a mão. Para ser ouvida em campo, foram necessárias as habilidades háptica e óptica

Desde o princípio, o desenho se mostrou um recurso metodológico importante de pesquisa para ver, inscrever, conhecer e compreender (CABAU, 2016; KUSHNIR, 2012, 2018). Neste ensaio, a seleção de imagens foi feita tendo como norte três intenções: 1) descrever graficamente cenas ou situações do campo físico a partir da memória; 2) pensar visualmente (MAGNI et al, 2018) e desenvolver analogias possíveis para compreender um processo demencial. A partir de muitas ou poucas linhas, conseguir ilustrar categorias, palavras e/ou narrativas observadas em campo ou em autobiografias; 3) deslizar entre a documentação e a imaginação/criação/fabulação para tornar a malha de relações que sustenta memórias e pessoas visível.

Mais do que proporcionar uma ocasião para refletir sobre a relação constitutiva de pessoas e coisas, em As linhas da demência procuro sensibilizar a visão para aquilo que a forra interiormente (MERLEAU-PONTY, 2014) e para aquilo que compõe a textura imaginária do real e irreal. Este ensaio é resultado de um investimento de observação de fragmentos obtidos pela memória (minha e de outros) e da investigação das imagens que brotaram na minha caminhada mental (INGOLD, 2015) para dar conta de um processo demencial. Abrir-se ao desenho e aos rastros deixados pela demência exige uma correção contínua da percepção para estar atento às qualidades itinerantes que se atualizam ao longo do fluxo de pesquisa: luzes, sombras, vazios, cheios, formas, proporções, texturas, movimentos, ritmos. Percorrer graficamente o emaranhado continuamente transitório e criativo do adoecimento é um empreendimento arriscado, porque não há garantias de como as coisas vão sair. Pela investigação desenhada das demências, podemos traz à luz os rastros de onde se esteve, fazendo ver o trajeto, o improviso, a rasura, a vacilação, as paradas, as descontinuidades e os traços que escapolem para fora da margem.  

 

Tessitura da Memória. Caneta nanquim sobre papel. Agosto de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, há um dedo humano com um laço de fita amarrado. As pontas do laço se conectam a outros fios. A trama formada conecta o dedo a alguns artefatos: um anel de brilhante, uma fita cassete com notas musicais, um porta-retrato de família, um calendário, um prato de feijoada e algumas ferramentas de trabalho (um capacete, uma pá e um martelo).

Tessitura da Memória. Caneta nanquim sobre papel. Agosto de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, há um dedo humano com um laço de fita amarrado. As pontas do laço se conectam a outros fios. A trama formada conecta o dedo a alguns artefatos: um anel de brilhante, uma fita cassete com notas musicais, um porta-retrato de família, um calendário, um prato de feijoada e algumas ferramentas de trabalho (um capacete, uma pá e um martelo).  

 

(Des)Orientações. Caneta nanquim sobre papel. Julho de 2020. #PraCegoVer Na metade superior do papel, um relato é seguido por uma ilustração. Escrito em vermelho, o relato de Diane narra: “Devido à minha bússula interna quebrada, Jack era obrigado a me acompanhar ao mercado. Ele me telefonava durante o dia para me lembrar de lavar as roupas e de outros afazeres domésticos. As refeições eram casuais. Jack me repreendida regularmente, porque durante o dia eu esquecia de me alimentar”. Ao lado do relato, no canto superior direito, uma bússula foi desenhada em caneta nanquim preta. Os ponteiros da bússula foram substituídos por uma pessoa que aponta para alguns elementos referenciais: um prato de comida, um telefone, uma máquina de lavar roupa e um boleto bancário. Na metade inferior do papel, outro relato de Diane, escrito em vermelho, é seguido por uma ilustração. Ela diz: “Angustiada, percebi que não conseguia encontrar a saída do estacionamento. Tudo parecia igual. Era como se estivesse num labirinto. Eu já havia ficado desorientada por diversas vezes em garagens e, em numerosas ocasiões, dentro de lojas, eu andava em círculos, devido às alas me parecerem idênticas. Esta era a primeira vez que isso me acontecia num estacionamento aberto; num pequeno estacionamento”. Ao lado do relato, no canto inferior esquerdo, três carros, andando em círculos, foram desenhados em caneta nanquim preta.

 

(Des)Orientações. Caneta nanquim sobre papel. Julho de 2020. #PraCegoVer Na metade superior do papel, um relato é seguido por uma ilustração. Escrito em vermelho, o relato de Diane narra: “Devido à minha bússula interna quebrada, Jack era obrigado a me acompanhar ao mercado. Ele me telefonava durante o dia para me lembrar de lavar as roupas e de outros afazeres domésticos. As refeições eram casuais. Jack me repreendida regularmente, porque durante o dia eu esquecia de me alimentar”. Ao lado do relato, no canto superior direito, uma bússula foi desenhada em caneta nanquim preta. Os ponteiros da bússula foram substituídos por uma pessoa que aponta para alguns elementos referenciais: um prato de comida, um telefone, uma máquina de lavar roupa e um boleto bancário. Na metade inferior do papel, outro relato de Diane, escrito em vermelho, é seguido por uma ilustração. Ela diz: “Angustiada, percebi que não conseguia encontrar a saída do estacionamento. Tudo parecia igual. Era como se estivesse num labirinto. Eu já havia ficado desorientada por diversas vezes em garagens e, em numerosas ocasiões, dentro de lojas, eu andava em círculos, devido às alas me parecerem idênticas. Esta era a primeira vez que isso me acontecia num estacionamento aberto; num pequeno estacionamento”. Ao lado do relato, no canto inferior esquerdo, três carros, andando em círculos, foram desenhados em caneta nanquim preta.

 

Baile de Carnaval do Centro de Referência à Saúde do Idoso, da Universidade Federal Fluminense. Caneta nanquim sobre papel. Julho de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, duas senhoras brincam carnaval. Em primeiro plano, Maria da Conceição, vestindo uma bermuda, uma blusa regata de bolinhas e um arco com flores. Em suas mãos, um leque e um chocalho feito com copos plásticos descartáveis. Ao seu lado, de costas para quem observa, encontra-se Neide, vestido uma blusa de manga curta e um arco com folhas de samambaia.

 

Baile de Carnaval do Centro de Referência à Saúde do Idoso, da Universidade Federal Fluminense. Caneta nanquim sobre papel. Julho de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, duas senhoras brincam carnaval. Em primeiro plano, Maria da Conceição, vestindo uma bermuda, uma blusa regata de bolinhas e um arco com flores. Em suas mãos, um leque e um chocalho feito com copos plásticos descartáveis. Ao seu lado, de costas para quem observa, encontra-se Neide, vestido uma blusa de manga curta e um arco com folhas de samambaia.

 

Trocadilhos de Malu no Centro de Referência à Saúde do Idoso, da Universidade Federal Fluminense. Caneta nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No canto superior direito do papel, um balão com uma pergunta de Anabete, terapeuta ocupacional do Centro de Referência à Saúde do Idoso: “Pessoal, alguém aqui costuma caminhar?”. No centro da imagem, três senhoras estão sentadas lado a lado sobre carteiras escolares. Na segunda carteira está Malu, que responde à Anabete: “Pero Vaz Caminha!”.

Trocadilhos de Malu no Centro de Referência à Saúde do Idoso, da Universidade Federal Fluminense. Caneta nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No canto superior direito do papel, um balão com uma pergunta de Anabete, terapeuta ocupacional do Centro de Referência à Saúde do Idoso: “Pessoal, alguém aqui costuma caminhar?”. No centro da imagem, três senhoras estão sentadas lado a lado sobre carteiras escolares. Na segunda carteira está Malu, que responde à Anabete: “Pero Vaz Caminha!”.

 

Malha Neural. Nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer Alguns pontos soltos no papel são interligados por fios, formando uma malha. Dentro da malha, algumas palavras foram escritas em vermelho e preto: direção, tempo, espaço, desejo, trabalho, logos, pulsão, escrita, continuidade. Cada letra foi escrita em um pequeno espaço que se formou na tessitura da malha.

Malha Neural. Nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer Alguns pontos soltos no papel são interligados por fios, formando uma malha. Dentro da malha, algumas palavras foram escritas em vermelho e preto: direção, tempo, espaço, desejo, trabalho, logos, pulsão, escrita, continuidade. Cada letra foi escrita em um pequeno espaço que se formou na tessitura da malha. 

Síndrome do Pôr-do-Sol. Caneta nanquim e aquarela sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No canto superior do papel, um relato de Teresa, familiar-cuidadora: “Ela está com a síndrome do pôr-do-sol. Toda tarde arruma 5 ou 6 malas para ir embora. É uma doença cruel. É angustiante para eles também, porque eles têm lampejos e percebem que estão perdendo algo e não sabem o quê”. Abaixo do relato, uma ilustração. No desenho, um sol se põe em vermelho atrás das montanhas, compostas por diferentes planos e texturas (pontinhos, traços, bolinhas) em preto. Dentro do sol, foi desenhado um rosto angustiado e enfurecido.

Síndrome do Pôr-do-Sol. Caneta nanquim e aquarela sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No canto superior do papel, um relato de Teresa, familiar-cuidadora: “Ela está com a síndrome do pôr-do-sol. Toda tarde arruma 5 ou 6 malas para ir embora. É uma doença cruel. É angustiante para eles também, porque eles têm lampejos e percebem que estão perdendo algo e não sabem o quê”. Abaixo do relato, uma ilustração. No desenho, um sol se põe em vermelho atrás das montanhas, compostas por diferentes planos e texturas (pontinhos, traços, bolinhas) em preto. Dentro do sol, foi desenhado um rosto angustiado e enfurecido.

 

Neurotransmissores. Caneta nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, quatro postes de energia elétrica foram desenhados em caneta nanquim preta. Os fios de energia, que os conectam, apresentam rupturas e curtos-circuitos (ilustrados com o embaralhar das linhas e linhas com o fluxo rompido).

Neurotransmissores. Caneta nanquim sobre papel. Setembro de 2020. #PraCegoVer No centro do papel, quatro postes de energia elétrica foram desenhados em caneta nanquim preta. Os fios de energia, que os conectam, apresentam rupturas e curtos-circuitos (ilustrados com o embaralhar das linhas e linhas com o fluxo rompido).